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DOS
3 AOS 8 ANOS, AS MINHAS MEMÓRIAS MAIS REMOTAS
por Francisco Souto Neto
A promessa de uma vela do meu tamanho
Eu, muito pequeno, por volta dos 3 anos, nos braços de minha mãe, vejo uma mulher aproximar-se aos prantos, querendo arrancar-me do colo materno. Minha mãe me protege pondo-me ora de um lado dos seus ombros, ora do outro, afastando-se, esquivando-se, desviando-se das investidas.
Muitos anos depois, um dia
disse à minha mãe que me lembrava de uma mulher querendo arrancar-me dos seus
braços, e perguntei-lhe o por quê daquela agressão. Minha mãe arregalou os
olhos: “Você ainda era ‘de colo’! Como você se lembra disso?”.
Muito surpresa com minha memória,
minha mãe contou-me o que ocorreu: carregando-me no colo, ela aproximava-se do
portão de nossa casa, quando uma mulher desconhecida, que vinha em sentido
contrário, começou a chorar ao ver-me, contando-lhe exaltada que seu filho
estava hospitalizado, e que ela prometia mandar fazer uma vela do meu tamanho
se o seu menino sobrevivesse. Desesperada, queria tocar-me, enquanto eu,
certamente com muito medo daquilo que talvez me parecesse uma agressão, deveria
estar chorando aos berros.
Minha mãe nunca soube quem era
aquela mulher, nem se seu filho sobreviveu. E assim posso dizer que a lembrança
mais antiga que tenho da minha vida é do desespero de alguém em face à ameaça
da morte.
Na estação de trem, uma revolta à chupeta alheia
Vejo-me em pé na plataforma da
estação ferroviária, ao lado de minha mãe. Devo ter uns 4 anos. Aproxima-se de
nós um menino do meu tamanho, levado pela mão de sua mãe. O menino tem na boca
uma chupeta. Eu arranco a chupeta da boca do menino, sua corrente rompe-se, e
eu atiro o objeto à distância. A mãe do menino grita, minha mãe me protege e
conversa com a mulher que segura o filho. Este parece pasmo, com a expressão
petrificada de assombro, surpreso diante de algo que não se espera ou não se
compreende.
Eu soube, muitos anos depois,
o motivo da minha revolta: minha mãe retirara a minha chupeta e eu passei a
apresentar uma atitude de agressão contra as crianças que desfrutavam das suas.
Embora eu me lembre de ter agredido apenas o menino na plataforma da estação de
trem, minha mãe contava que eu fiz o mesmo contra outras crianças. Tomara que eu
não as tenha traumatizado em demasia.
O trem que passa no meio da noite e a mamadeira na cama pela manhã
Uma lembrança também muito
remota que tenho, ainda por volta dos 4 anos, é a seguinte: estou no colo de
minha mãe, dentro de um carro no meio da noite. O carro está parado. De repente
ouço apitos na escuridão, surge um farol radioso... e uma assustadora e
barulhenta locomotiva fumegante passa à nossa frente, carregando muitos vagões
com as janelas iluminadas e cheias de pessoas.
Ligada a esta, tenho mais uma memória que se segue: na sequência ao trem, chegamos logo a uma casa de fazenda. Ali, todas as manhãs sou despertado pela minha mãe para receber uma mamadeira com leite morno. Na casa dessa fazenda há uma varanda muito grande com sofá e poltronas de palhinha.
Também houve uma ocasião em
que eu, já menino crescido, perguntei à minha mãe que lugar seria aquele em que
vi passar um trem à nossa frente no meio da noite, e que casa avarandada, com
poltronas de palhinha, seria aquela onde, antes do nascer do sol, eu recebia na
cama uma mamadeira com leite morno. Admirada com minha lembrança, minha mãe
contou-me que aquilo aconteceu numa viagem que fizemos à fazenda de um tio,
próxima à minha cidade natal de Presidente Venceslau, no Estado de São Paulo.
Não me recordo do nome do tio. Mas era ele quem tirava o leite de uma vaca
muito especial, destinado ao consumo da família, e o trazia para mim.
O primeiro beijo, aos 6 anos, numa “namoradinha”
Passaram-se 5 anos após a foto
acima. Vejo-me agora, seguramente aos meus 6 anos, sentado num banco de
madeira, no quintal meio ajardinado. Ao meu lado, minha prima Aidinha, um ano
mais velha. Aproximo-me dela e dou-lhe um beijo na bochecha. Ouço risos. Neste
momento olho em direção à casa e vejo, debruçadas na janela, a minha mãe e sua
prima Elisa, irmã de Aidinha, que rindo nos observam. Na minha reação infantil, aquele riso
me desconserta. Saio correndo para enconder-me, envergonhado. Essa cena ocorreu
no Porto XV de Novembro, Mato Grosso Uno, onde residiam os pais de Elisa e
Aidinha, primos de minha mãe, aos quais eu chamava de “tios”: Tio Pery e Tia
Emerenciana. Porto XV era um vilarejo às margens do Rio Pardo, quase onde
desemboca no Rio Paraná, pouco abaixo da cidade paulista de Presidente Epitácio, um lugar que não existe mais, porque foi inundado para formação do
lago da represa hidroelétrica Sérgio Motta.
Quero acrescentar que havia uma música que durante toda a infância fazia lembrar-me do Porto XV, que era ouvida na vitrola da casa de Tio Pery. Em minha casa tínhamos o mesmo disco, que é hoje tido como a provável primeira gravação de chamamé no Brasil. A música denominada Camba Cuá, também classificada como rasqueado, é originalmente argentina, e no Brasil foi gravada pelas Irmãs Castro:
Abaixo, o link para ouvir "Camba Cuá" com Irmãs Castro:
https://www.youtube.com/watch?v=UaGh7H4mUiA
Depois do referido episódio do beijo em Porto XV, sempre que esse disco era tocado em minha casa, os adultos olhavam-se, olhavam-me e riam... e eu corria para esconder-me. A canção fazia lembrar-me de Aidinha, um “romance" infantil interrompido, que me pareceu “desrespeitado” pelo riso das “intrusas” da janela...
Um Papai Noel medonho
Na véspera do Natal de 1948 ou
1949, morávamos na Rua Visconde de Nacar nº 149, em Ponta Grossa. À noite havia
muita correria de crianças no meio da rua que era calçada com paralelepípedos.
De repente uma agitação maior fez saber que Papai Noel chegava para conversar
com as crianças. Minha mãe pegou-me no colo para que eu ficasse com meu rosto à
altura do de Papai Noel, para com ele conversar. Quem se vestia de Papai Noel
era nossa vizinha Adelaide Emílio, que usava uma máscara dura de tecido
engomado e pintada com os traços do rosto de um velho. Mas eu não sabia disso e
acreditava, como as demais crianças, que ali se apresentava o Papai Noel
verdadeiro, vindo do Pólo Norte.
Quando minha mãe aproximou-se
do Papai Noel e ele falou comigo, percebi, horrorizado, que sua barba era de
algodão, ele falava sem que os lábios se movessem, e os olhos pareciam dois
buraquinhos na cara muito assustadora. Eu deduzi, na hora, que se o Papai Noel estava
com algodão no rosto, é porque ele devia ter saído de um hospital, e sua cara
petrificada e sem expressão era um sinal de que ele estaria doente. Com medo de
olhar aquela aberração, tapei os meus olhos com as mãos e foi assim que falei
com aquele Papai Noel monstruoso. Vale acrescentar que eu tinha medo de pessoas
que tivessem sido hospitalizadas.
Máscara de Papai Noel muito bem elaborada e com a barba convincente. A do Papai Noel da minha infância era muito mais primitiva e assustadora, com grosseira barba de algodão mesmo! Foto da internet.
Na véspera do Natal do ano seguinte,
minha mãe levou-me para a rua, em frente à nossa casa, para o encontro com
Papai Noel. Como eu não quisesse ir, ela pegou-me no colo e ali fiquei com os
olhos fechados protegidos pelas minhas próprias mãos em concha. Abri os olhos
por um instante e vi que meu melhor amigo, Carlos Roberto Emílio, corria
brincando com outras crianças. Lembro-me claramente de que fiquei admirado com
a coragem do amiguinho que não demonstrava medo do Papai Noel, cuja figura já
despontava virando a esquina e vindo na minha direção. Consigo lembrar-me de
perceber nele a mesma assustadora face sem expressão. Fechei os olhos e, com o
coração aos saltos de tanto pavor, disse ao Papai Noel quais os presentes que eu desejava receber. Na manhã seguinte, dia 25, corri até à árvore de Natal, e constatei que o Papai Noel trouxera todos os presentes que eu desejava. Achei que o velho Papai Noel era muito bondoso, embora sua aparência fosse apavorante.
Quando meu amigo Carlinhos me
contou que Papai Noel não existia e que ele era a Adelaide “fingindo” ser um
Papai Noel, lembro-me do meu suspiro de alívio. Creio que naquele momento
surgiu-me o descrédito às divindades e nasceu em mim o agnóstico que sou hoje.
Viagem de trem de Ponta Grossa a São Paulo
Tempestade: o voo quase fatal entre Ponta Grossa e Campo Grande em 1952
A minha primeira viagem aérea
ocorreu em 1952, há exatos 70 anos, quando eu tinha 8 anos, época em que ainda ainda não
existiam voos comerciais em aviões a jato. Foi uma viagem de Ponta Grossa a
Campo Grande, a bordo de um DC-3 da Real Aerovias, um avião com duas hélices,
velocidade de 200 a 300 km/h, com capacidade para 21 a 32 passageiros e três
tripulantes, dentre os quais uma aeromoça. Embarquei com meus pais e os dois
irmãos, Olímpio e Ivone.
O avião deu uma corrida pela
pista de terra e alçou voo. Para o aparelho ganhar altura, não havia a
suavidade que encontramos hoje nos aviões a jato. A sensação era de estarmos
numa montanha russa, empurrando para cima e o estômago descendo, e empurrando
para baixo e o estômago subindo. Houve várias escalas antes da chegada ao
destino, porém não me recordo quantas, nem em que cidades o avião aterrissou
para desembarque de uns passageiros e embarque de outros. Também não me lembro
do que nos foi oferecido para comer durante a longa viagem.
Inesquecível foi a tempestade
que atravessamos quando voávamos já sobre Mato Grosso, após o Rio Paraná que
avistamos quando as nuvens o permitiam. Começou então uma chuva forte, e foram
intensificando-se os raios e trovoadas. Eu via raios cortando o opaco das
nuvens. O simples fato de os DC-3 voarem baixo, fazia-os mais sujeitos a
turbulências. À medida que nos aprofundávamos na tempestade, o avião saltava
para cima, para baixo e para os lados o tempo todo. Na minha imaginação, vi-me
numa carroça com o cavalo desembestado numa estrada cheia de buracos. Era
estranho que o avião desse tantos socos "secos" onde não existia chão. Ouvi alguns gritos.
A aeromoça foi projetada para cima, parece que bateu a cabeça no teto e caiu no corredor
entre as poltronas. Dos bagageiros despencaram vários volumes. Os passageiros começaram a vomitar nos sacos de papelão
próprios para esse tipo de indisposição, naquele tempo em que ainda não
existiam sacos de plástico. E eram tantas pessoas vomitando, que gritos ouviam-se
de todos os lados. Todos segurávamos sacos de papelão amparados na boca. E o
que fazer com um saco cheio de vômito? Era preciso pô-lo em algum lugar, e os
bolsos da parte traseira das poltronas da frente foram utilizados para tal fim.
Pode-se imaginar que esses sacos, espremidos nos bolsos, resultaram em
vazamentos. Ohhh! Oh! Ohhhhh! Os gritos e gemidos não paravam. A poltrona de um
senhor gordo, duas filas atrás, desmontou-se e o pobre homem esparramou-se no
corredor molhado de vômitos. Por sorte era a primeira poltrona após a porta de
entrada do avião, que ficava no fim da cauda, e desta maneira aquele assento desabou
em frente à porta e não sobre uma poltrona de trás – que sem dúvida feriria as
pernas de algum passageiro. Lembro-me de alguns homens, dentre eles meu pai,
levantando-se agarrados às poltronas do corredor, para irem acudir ao pobre
senhor acidentado. Levaram-no para trás, onde o colocaram em algum lugar. Não vi onde, pois
eu estava mais preocupado em observar a porta do avião, temendo que ela de
repente se abrisse.
Ficou na minha memória a
aterrissagem em Campo Grande e os passageiros desembarcando descabelados, com
algumas manchas nas roupas.
Foi mais um momento em que eu,
criança, refleti sobre essa coisa que naquele tempo me pareceu estranha, abstrata
e aterrorizante, quase inconcebível na tenra idade, a que chamamos de finitude.
Meu jardim de infância em 1950
No primeiro dia da minha vida em que saí de casa rumo a uma escola, ocorreu em Ponta Grossa em 1950. Levados pela minha irmã Ivone, fomos eu e meu vizinho Carlinhos (Carlos Roberto Emílio), da mesma idade, curiosos e com um pouco de medo do tal "jardim de infância".
As ordens de meus pais eram expressas: eu e Carlinhos de mãos dadas durante todo o percurso (uns dez quarteirões), minha irmã segurando minha mão. Levávamos nossas lancheiras abastecidas para a hora do recreio. E assim chegamos ao Colégio Sant'Ana. Era um colégio para meninas, mas o jardim da infância funcionava com turmas mistas.
Chegando ao colégio, minha irmã entregou-nos a uma freira. Por um momento senti pânico, pois queria a presença de minha irmã, mas esta seguiu para a sua classe e a freira puxou-nos pela mão para outro lado. O jardim de infância funcionava fora do antigo e majestoso prédio. Atravessamos o pátio dos recreios e, lá no fundo do terreno, existia uma escada que levava ao que chamávamos de pavilhão, um prédio "moderno" com uma única sala imensa. Ali funcionava o jardim de infância.
Emtre nossas carteiras comunitárias, lembro-me de ver freiras passando com enormes cartazes mostrando cenas do Velho Testamento, enquanto outra dissertava sobre aquilo que nos era exibido. Quando voltávamos do recreio, tínhamos que fazer um "repouso" de alguns minutos, debruçados sobre a carteira e os braços cruzados servindo de travesseiro. Algumas crianças adormeciam e as freiras, ao retomar a aula, respeitavam o sono do aluno e deixavam que se acordassem normalmente.
A escada que levava do pátio ao pavilhão, era externa. Na subida notávamos uns "respiradouros", que era o nome que davam àquelas pequenas aberturas, fechadas por grades, que existiam para ventilar os porões. Entre as crianças corria o boato de que ali existia o "quarto escuro", um lugar para onde seriam levadas as crianças desobedientes. A verdade é que as freiras, a quem tratávamos por "irmãs", eram dulcíssimas, e creio que desconheciam essa futrica certamente inventada pelas crianças mais velhas.
Certa ocasião houve uma "festa" no jardim de infância. À entrada do pavilhão recebemos uma bandeja e, em fila, fomos ganhando salgados, doces e um refrigerante. Havia muita correria dos meninos maiores, e esses passavam por nós, as crianças menores, e furtavam nossos doces. Encolhi-me num canto para me proteger das investidas dos colegas ladrões.
Lembro-me dos nomes de apenas três colegas: Carlos Roberto Emílio, Marli Tamura Campos (ela casou-se com um colega que tive no Banestado, na década de 70, o Erol Vinícius Campos) e Álvaro Correia de Sá Filho. Sobre este último, tenho uma história curiosíssima que algum dia relatarei numa crônica.
Quem tiver curiosidade para saber das professoras de minha infância, as encontrará nesta crônica que publiquei em jornal há muitos anos:
https://soutoneto.wordpress.com/2014/12/02/professoras-da-minha-infancia-os-inocentes-e-as-bruxas/
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